
Especial para o Correio — Dante Accioly
O cabelo dele parecia a chama do Panteão, na Praça dos Três Poderes. Ruivo, quente, inflamado. Aqueles cachinhos flamejantes atravessaram o gramado do Congresso Nacional como rastilho de pólvora acesa na minha direção. As covinhas nas bochechas, o sorriso generoso e cheio de infância.
Fazia tempo que eu não via meu afilhado. Ele morava do outro lado do Atlântico e havia acabado de chegar para curtir as férias em Brasília. Seis meses antes, nós havíamos ado duas semanas juntos, quando fui visitá-los em Paris. Lembro da farra que era o sobe-desce nas escadas do metrô com o João e o irmão gêmeo dele, o Pedro, aconchegados em seus carrinhos de bebê.
Eu não tinha filhos, nem convivia com crianças pequenas. Tudo para mim era novidade. As trocas de fraldas, os brinquedos espalhados pela sala, os desenhos animados na TV, as mamadeiras de suco de laranja na mesa do café, a algazarra no corredor, o choro de madrugada, o consolo dos pais…
Voltei para Brasília cheio de saudade do João, mas com a impressão de que essa coisa de paternidade talvez não fosse para mim. Egoísta ao extremo, eu tinha a sensação de que ser pai de criança pequena era abrir mão da própria liberdade. Acordar todo dia no meio da noite. Não poder curtir uma ressaquinha preguiçosa depois de uma noite de farra. Gastar uma pequena fortuna com fraldas descartáveis. Não, aquilo não era mesmo para mim.
Até que vi os cachinhos ruivos do João. Ele se soltou da mão do pai e veio correndo para mim, com toda a determinação que suas perninhas de dois anos tinham à disposição. Eu sentei no gramado verde de novembro e fiquei esperando o abraço.
O João se aninhou quietinho entre os meus braços — como nem ele nem ninguém havia feito até então. Encaixou e não saiu mais dali. Eu não disse nada de especial — sou um cara meio caladão. Só abracei meu afilhado e tentei devolver toda a felicidade que ele havia despertado em mim.
O abraço do João me transformou. Começou a minar a couraça de egoísmo sob a qual eu me escondia. Despertou em mim a fagulha de um tipo de amor que eu não conhecia, mas estava muito disposto a experimentar.
Não deu outra: fui pai pela primeira vez no ano seguinte. Peguei gosto pela coisa e, hoje, tenho três lindas filhas que estão cansadas de ouvir meu bordão: "Cadê o abraço do velho?" Meu psicólogo de botequim diz que estou querendo perpetuar aquele primeiro abraço — o abraço do João.
Hoje em dia, quase não converso com meu afilhado. Com eu disse, sou um cara meio caladão. Mas ontem tive notícias dele. O danado ou no vestibular da UnB e começa as aulas em março. Parabéns, João! E muito obrigado: seu abraço mudou minha vida.