
A eleição de Tancredo Neves para presidente da República, no Colégio Eleitoral, em 15 de janeiro de 1985, representou mais do que somente o epílogo da ditadura. Foi a vitória da articulação política e do diálogo entre atores nem sempre alinhados ideologicamente, mas, sobretudo, a derrota dos radicais militares e civis. A desarticulação e as discordâncias no governo de João Baptista Figueiredo permitiram que grupos ligados à tortura tentassem, via terrorismo à sombra do Estado, estabelecer o caos para que o processo de redemocratização fosse interrompido. A estimulá-los, pelo endosso ou pela omissão, personagens de altas patentes — um atestado da indisciplina que grassava no Exército.
A abertura política vinha sendo conduzida, a os cuidadosos, por políticos ligados aos governos ditatoriais. O expoente dessas articulações era o senador Petrônio Portela (Arena-PI). Desde 1977, por orientação do então general presidente Ernesto Geisel, ele viajava pelo Brasil para ouvir entidades representativas da sociedade e colher delas propostas que julgavam necessárias à retomada democrática — movimento que ficou conhecido como Missão Portela. E, por isso, era malvisto entre muitos fardados.
A menção à redemocratização ardia ao ser pronunciada entre setores militares e civis, que discordavam do processo por acreditarem que os generais presidentes desviaram-se dos ideais da "revolução redentora" de 1964. Para eles, era preciso endurecer o regime e evitar que a marcha pela volta do Estado de Direito ganhasse tração. Tal retomada era entendida, entre os extremistas, como o avanço da ameaça comunista. E contra isso haveria resistência.
"Prendo e arrebento"
Figueiredo tinha pleno conhecimento de que seria difícil domar os radicais. Era preciso mandar recado. Na primeira entrevista concedida depois de eleito presidente, em 15 de outubro de 1978, pelo Colégio Eleitoral — a chapa formada com o engenheiro Aureliano Chaves recebeu 355 votos contra os 226 dados à integrada pelo general Euler Bentes Monteiro e o jurista Paulo Brossard —, disse de forma claríssima que não aceitaria retrocessos.
"Você acha que estou mentindo quando prometo? Há quatro meses que não faço outra coisa. Na hora que sou eleito, vocês (jornalistas) vêm perguntar se é verdade. Imagina a ideia que o povo faria de mim se dissesse que ia pensar melhor", respondeu o presidente, inicialmente.
O repórter, talvez percebendo irritação no tom de voz de Figueiredo, insistiu: "Então, é para abrir mesmo?"
"É para abrir mesmo. E quem quiser que não abra, eu prendo, arrebento. A minha reação, agora, vai ser contra os que não quiserem a abertura", relembra Bernardo Braga Pasqualette, em Me esqueçam — Figueiredo, a biografia de uma Presidência.
O general, famoso por ser irascível e impaciente, assume o poder em 15 de março de 1979, em cerimônia no Congresso. No discurso de posse, novo recado a setores reacionários: "Reafirmo, portanto, os compromissos (...) de assegurar uma sociedade livre e democrática. (...) Reafirmo: é meu propósito inabalável — dentro daqueles princípios — fazer deste país uma democracia. As reformas do eminente presidente Ernesto Geisel prosseguirão, até que possam expressar-se as muitas facetas da opinião pública (...). Reafirmo o meu gesto: a mão estendida em conciliação. Para que os brasileiros convivam pacificamente. Para que as divergências se discutam e se resolvam na harmonia e na boa vontade".
Em 28 de agosto, Figueiredo promulgava a Lei 6.683/79, a Lei da Anistia — que perdoou crimes políticos, inclusive o de torturas e sevícias cometidos por agentes de Estado; abonou quem teve os direitos políticos cassados; e permitiu que dissidentes voltassem do exílio fora do Brasil.
A abertura política leva um grande susto com a morte de Petrônio, então ministro da Justiça, em 6 de janeiro de 1980 — personagem que vinha trabalhando para garanti-la desde o governo Geisel. Somente neste ano, houve 46 atentados terroristas atribuídos aos extremistas inconformados com o rumo à redemocratização. Nessas ações, atacaram o Hotel Everest, no Rio, onde o ex-governador do Rio Grande do Sul Leonel Brizola estava hospedado (18 de janeiro); o escritório do advogado Heráclito Sobral Pinto (13 de março), um dos principais defensores dos direitos humanos durante a ditadura; e uma palestra do líder comunista Gregório Bezerra (22 de março).
Em 27 de agosto, no Rio de Janeiro, três cartas-bombas são detonadas com diferença de poucas horas: uma no jornal de esquerda Tribuna Operária, outra na Câmara dos Vereadores e mais uma na seção fluminense da Ordem dos Advogados do Brasil. Esta matou a secretária Lyda Monteiro da Silva. As datas e os episódios foram coletados pelo coronel do Exército Dickson Grael e reunidos no livro Aventura, corrupção e terrorismo — À sombra da impunidade.
Para irritar os radicais ainda mais, em 13 de novembro uma emenda à Constituição acaba com as eleições indiretas para o Senado e estabelece pleito direto para os governos estaduais. Além disso, o pluripartidarismo avança com o PMDB (nova iteração do MDB), PSD (a Arena de roupa trocada), PT, PP, PDT e PTB.
Riocentro
Mas seria no ano seguinte que os agentes das sombras da ditadura se manifestariam mais violenta e ousadamente. Em 30 de abril de 1981, realizava-se um show musical em celebração ao Dia do Trabalho, organizado pelo Centro Brasil Democrático (Cebrade), no Riocentro — complexo de eventos, em Jacarepaguá, no Rio de Janeiro. Estava reunida a nata da Música Popular Brasileira: Luiz Gonzaga, Gonzaguinha, Alceu Valença, Clara Nunes, Djavan, Ivan Lins, Gal Costa, Fagner, João Bosco, Ney Matogrosso, Paulinho da Viola, Simone, Beth Carvalho, entre outros. Todos críticos, em maior ou menor grau, à ditadura e defensores da redemocratização. Na plateia, estudantes e pessoas de todas as idades.
Por volta das 21h20, na apresentação da paraibana Elba Ramalho, ouve-se um estrondo. Segundo o inquérito policial-militar (IPM) que investigou o episódio, havia no local 9.892 pessoas. Do lado de fora, no estacionamento, a cena chocante: o Puma (o esportivo elegante da época) placa OT-0279 destruído, com um homem gravamente ferido e outro morto no banco do carona — o sargento do Exército Guilherme Pereira do Rosário, codinome Wagner. Estava acompanhado do capitão do Exército Wilson Luís Chaves Machado, o Doutor Marcos, chefe da seção de operações do Departamento de Operações de Informações (DOI) do I Exército. Sobreviveu à explosão, apesar do ventre rasgado pelo artefato e um dos braços dilacerado. Por uma dessas ironias do destino, foi ajudado no socorro por Andreia Neves, neta de Tancredo. Por trás da bomba estaria o notório capitão do Exército Freddie Perdigão Pereira, um dos principais nomes da tortura na ditadura, então lotado na Agência Rio do Serviço Nacional de Informações (SNI). Havia, ainda, um segundo explosivo na casa de força do Riocentro, detonado sem maior consequência.
Figueiredo e general Danilo Venturini, chefe do Gabinete Militar da Presidência, teriam sido informados pelo general Otávio Medeiros, ministro-chefe do Serviço Nacional de Informações (SNI), dias antes, de que estava em curso o planejamento do atentado de 30 de abril. É o que expõe Elio Gaspari em A ditadura acabada, que acrescenta a agem de pelo menos dois militares, o tenente Divany Carvalho Barros (Doutor Áureo) e o coronel Júlio Miguel Molinas Dias (o Doutor Fernando), durante a perícia no Puma para recolher elementos que ligassem o crime ao DOI — cujos integrantes mais graduados eram classificados pela alcunha de "doutor". A fonte de Medeiros seria o general Newton Cruz, chefe da Agência Central do SNI.
O general Gentil Marcondes Filho, comandante do I Exército, e o coronel Job Lorena de Sant'Anna prestam honras militares ao sargento Rosário no sepultamento. Lorena substitui o também coronel Luís Antônio do Prado Ribeiro, que desiste de tocar o IPM "por razões de saúde". Produz um inquérito voltado para livrar os dois militares do Puma de qualquer culpa e imputá-la a supostos grupos radicais de esquerda e de direita.
"Mediante diligências mandadas realizar no Puma GTE, verificou-se a cabal possibilidade de volume equivalente ao presumível da bomba ter-se acomodado na parte lateral inferior, à direita, entre o banco e a porta, sem estorvar a entrada de um ageiro, nem estorvar o fechamento da porta", afirma Lorena, ao expor as conclusões do IPM, indicando que a bomba teria sido plantada.
"É cabível e justificável situar-se a suspeição de autoria do atentado, no âmbito de grupos identificados como VPR, MR-8 e Comando Delta, os dois primeiros de radicais de esquerda e o último agrupando radicais de direita", completa Lorena, como relatado no livro do coronel Dickson Grael.
Para Newton Cruz, o atentado foi um episódio à parte. "Houve ação isolada e de nível baixo. Por que aconteciam essas coisas? Pelo seguinte: você a muitos anos ensinando que tem que lutar contra o comunismo. Ensina, mete isso na cabeça de todo mundo, faz uma lavagem cerebral. E, depois, você chega e diz: 'Agora, você não vai fazer mais nada disso'. O pessoal que foi treinado para fazer isso, era apoiado porque fazia isso. Então, acaba agindo isoladamente", explicou o general a Ronaldo Costa Couto, em Memória viva do regime militar — Brasil: 1964-1985.
A lição, porém, parece não ter sido assimilada, mesmo adas quatro décadas. Na sessão da quarta-feira ada, da Primeira Turma do Supremo Tribunal Federal (STF) — que tornou o ex-presidente Jair Bolsonaro e sete ex-auxiliares réus por tramarem um golpe de Estado, em 2022 —, o ministro Flávio Dino lembrou em seu voto dos efeitos da ruptura democrática:
"Dizem que em 1º de abril de 1964 não morreu ninguém. Golpe de Estado mata, não importa se é no dia ou anos depois", frisou.
Na mesma sessão, também ao ler o voto pela aceitação da denúncia da Procuradoria-Geral da República (PGR) contra Bolsonaro, a ministra Cármen Lúcia fez questão de ressaltar: "Ditadura mata. Ditadura vive da morte — não apenas da sociedade, da democracia —, mas de seres humanos de carne e osso", salientou. (Continua na Parte II)
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