

Está registrado no credo oficial da Igreja Batista Renovada Moriá, artigo 29: "Cremos que a igreja e seus membros não devem envolver-se em política — votando ou sendo votado".
Está na fala do pastor: "Esclarecemos aos que em nosso meio querem votar em Bolsonaro qual é a nossa posição sobre o voto. Se não quiserem aceitar, devem procurar uma igreja como pensam".
E ele vai além: "Quem, porém, defender Lula, tem que sair sem conversa (…) Quem simpatiza com o petismo tem que nascer de novo e ser liberto das trevas. Sem isso, não deve ir para qualquer igreja".
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Um dos fiéis contextualiza a proibição ao exercício do voto a membros da igreja, que tem 14 templos em Fortaleza (CE), sob condição de anonimato.
"Na minha igreja, não podemos votar. O voto precisa ser anulado", diz à BBC News Brasil.
"Mas o pastor tem muita simpatia pelo Bolsonaro. A orientação é a saída da igreja para quem vota em Bolsonaro e, para quem vota em Lula, não ir para nenhuma igreja porque, segundo o pastor, essa pessoa não é filha de Deus."
O direito universal ao voto, direto e secreto, é garantido no Brasil pela Constituição e pelo Código Eleitoral.
Glauco Barreira Magalhães Filho, pastor e presidente da igreja, também é advogado, professor de Direito na Universidade Federal do Ceará e membro da Academia Cearense de Letras Jurídicas.

A reportagem o procurou insistentemente por e-mail, telefone e redes sociais. Ele não atendeu às ligações, não respondeu às mensagens e bloqueou o repórter em seus perfis online.
Em textos autorais, Barreira diz que fiéis não devem "dar voto a nenhum dos candidatos", nem aceitar "qualquer aproximação entre igreja e política partidária".
Mas no Facebook, onde tem 4,9 mil amigos e 1.928 seguidores, ele publica críticas a ministros do Supremo Tribunal Federal e do Tribunal Superior Eleitoral e a favor de um golpe militar e, em contraste com o veto à liberdade de voto na igreja, mostra simpatia pelo presidente Jair Bolsonaro (PL), enquanto compartilha imagens qualificando Luiz Inácio Lula da Silva (PT) como "rato barbudo".
A BBC News Brasil também procurou a reitoria da Universidade Federal do Ceará (UFC) e a direção da Faculdade de Direito. Ambas não comentaram a conduta religiosa do professor.

'Coagir alguém a votar ou não'
Em artigo publicado em jornal ligado à igreja em 2011, o pastor e professor afirma que fiéis não podem votar, nem apoiar candidatos ou concorrer a cargos.
"Pelo fato de a política deste mundo estar sob a influência de Satanás, o príncipe deste mundo (João 14:30) e Deus deste século (II Cor. 4:4), não devem os cristãos se envolver com ela, quer sendo cabo eleitoral, candidato ou eleitor."
Ele completa: "Devemos ir às urnas em obediência às autoridades, mas não devemos dar o nosso voto a nenhum dos candidatos, pois o reino de Deus não é deste mundo".
Especialistas em Direito Eleitoral consultados pela BBC News Brasil dizem que violações às normas eleitorais por líderes e associações religiosas e candidatos podem levar à aplicação de multas e, em casos graves, a sentenças de prisão e até cancelamento do registro de candidaturas.
O veto da igreja de Fortaleza à liberdade de voto aos fiéis, sob ameaça de saída compulsória da igreja, poderia representar violação do artigo 301 do Código Eleitoral, que proíbe "coagir alguém a votar, ou não votar".
"Vai se examinar se o grau de coação é um grau importante. Se aquele fiel pensa que, se for expulso da igreja, irá para o inferno, ou coisa do tipo, isso pode ser uma coação grave. Isso tem que ser examinado caso a caso", explica um ex-ministro do Tribunal Superior Eleitoral à BBC News Brasil.
A pena sugerida no artigo 301 é de reclusão de até quatro anos e pagamento de 5 a 15 dias-multa.
O magistrado também cita lei 9.840, que define compra de votos, entre outros temas.
"É vedado. Você não pode coagir uma pessoa a votar de uma forma ou votar de outra forma. É ilícito", ele afirma.
A BBC News Brasil recentemente detalhou os possíveis crimes eleitorais associados a ameaças religiosas.

A igreja e seu pastor
A sede da Igreja Batista Renovada Moriá em Fortaleza fica num casarão amarelo emoldurado com pedras e um mosaico azul, verde, marrom e roxo. Atrás do portão, uma placa de madeira traz o nome do pastor e professor universitário: "Rev. Glauco Barreira Magalhães Filho".
A denominação, que completou 30 anos em Fortaleza em 2018, teria aproximadamente 500 fiéis, segundo relato de um dos seguidores à BBC News Brasil.
A igreja se autodenomina anabatista, mas não integra grupos históricos deste movimento cristão, como os amish e os menonitas.
Nos 48 tópicos registrados em seu credo há regras rígidas:
"Cremos que o homem deve ter cabelo curto e a mulher deve ter cabelo longo", diz o tópico 18.
"Cremos que joias, pinturas e atavios devem ser repudiados", afirma o seguinte.
"Cremos que anticonceptivos artificiais e cirurgias para evitar filhos são pecaminosos", continua o texto.
Glauco Barreira é mestre em direito e doutor em sociologia pela Universidade Federal do Ceará.
Durante a graduação, era visto como "sério, estudioso, ligado em filosofia", segundo relato de um ex-colega de faculdade à BBC News Brasil. Nas palavras do contemporâneo, com o tempo teria se tornado "uma Damares (Alves) da Academia", em referência à senadora bolsonarista eleita pelo Distrito Federal.
Coordenou cursos de Direito em faculdades privadas e seu currículo na plataforma Lattes inclui pesquisas em Filosofia do Direito, Hermenêutica jurídica, Teoria do Direito, Direitos Fundamentais e Imaginário Jurídico.
Entre suas áreas de atuação está o direito Constitucional - área dedicada a estudar a Constituição Federal, onde está estabelecido que todos os cidadãos brasileiros têm direito ao voto livre e secreto.
Barreira ganhou projeção nacional em 2013, como professor, quando escreveu no site da faculdade de Direito da UFC que o reconhecimento do casamento homoafetivo pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ) seria um "golpe de estado".
Neste texto, Barreira associou a atuação do CNJ e do Supremo Tribunal Federal (STF), citando o então ministro Joaquim Barbosa, ao comportamento de Adolf Hitler.
Atualmente, publica diariamente opiniões sobre as eleições em suas redes sociais.
Recentemente, o professor e pastor divulgou montagem com um retrato do líder da revolução chinesa Mao Tsé-tung junto ao logotipo do TSE, junto aos dizeres: "Mao TSE Tung".
Em outra, a imagem de uma boca costurada sob as letras "STF" e o seguinte texto: "Muito em breve, se nada for feito, nosso direito sagrado à liberdade de expressão será totalmente tolhido pelo STF", diz a legenda.
Em um álbum de fotos, incluiu cópia da primeira página do jornal Correio da Manhã de 3 de abril de 1964 - dois dias após o golpe militar.

Um texto adicionado ao facsímile apoiava um novo golpe, convocando pessoas para um ato chamado "clamor pela intervenção" na avenida Paulista, em 2019: "A história demonstra claramente. Por causa do povo em massa nas ruas é que houve intervenção militar".
Entre diversas falas antivacina, o pastor e professor estimulou seguidores que tomaram imunizantes e tiveram covid a processarem suas empresas.
As dezenas de publicações diárias também promovem suas atividades como pastor. Caso do anúncio de um culto especial que presidiu sobre "O que a bíblia diz sobre a condenação eterna (inferno)?".

A reportagem perguntou ao pastor e professor de Direito Glauco Barreira Magalhães Filho:
- Por que o senhor veta a seus fiéis - textualmente e durante cultos - a liberdade de voto, sob ameaça de saída compulsória da igreja?
- O Código Eleitoral, como sabe, tipifica como crime "ameaça para coagir alguém a votar, ou não votar". Condicionar a presença na igreja ou não à anulação do voto foi entendido como infração à lei, na avaliação de uma autoridade entrevistada pela reportagem. Qual é a sua reação?
- O senhor é professor Associado I da escola de Direito da Universidade Federal do Ceará. É membro da Academia Cearense de Letras Jurídicas. Vê contradição entre sua atuação religiosa e o que ensina e como atua profissionalmente?
Nenhuma das perguntas foi respondida, nem os pedidos de entrevista por telefone foram atendidos.
O artigo 29 do credo da igreja liderada por Batista diz que "membros não devem envolver-se em política (votando ou sendo votado)".
O trecho inclui uma série de agens bíblicas como e à regra, entre as quais "A nossa cidadania, porém, está nos céus, de onde esperamos ansiosamente o Salvador, o Senhor Jesus Cristo" (FL 3:20).

O pastor e professor definiu a igreja num artigo publicado em novembro de 2016. No texto, ele reitera a relação da denominação que preside com a política.
"A Igreja Batista Renovada Moriá é anabatista. Nem todos os batistas são anabatistas (...) Os anabatistas distinguem-se deles por não aceitarem qualquer aproximação entre a igreja (ou os crentes individuais) e a política partidária."
Contradição
À reportagem, um dos fiéis da igreja liderada por Barreira narra um rígido processo seletivo para entrada na agremiação.
"Antes de qualquer pessoa ingressar na igreja, ela a por uma fase de estudos. Caso esteja de acordo e queira ser membro, é submetido a uma entrevista."
"Se você convencer os pastores e líderes da sua convicção, será aceito."
A avaliação pode acontecer por escrito ou por meio de entrevistas. Segundo a pessoa entrevistada, caso as regras da igreja sejam descumpridas - a obrigatoriedade de voto nulo nas eleições, inclusive -, o fiel é imediatamente afastado.

"Durante o convívio na comunidade, se o seu comportamento ou atitudes demonstrar o contrário do regulamento interno aceito, o seu nome é expulso do rol de membros."
A pessoa entrevistada se mostra constrangida pelo posicionamento político do pastor e professor da universidade cearense.
"O pastor determina nossa salvação em relação à nossa simpatia por A ou B, como está escrito na nota dele", ela diz.
Diz que está "em desacordo com a doutrina" porque vê contradição entre a postura pessoal do pastor e o que ele prega no púlpito.
"Eu acho esquisito o pastor demonstrar tanta simpatia pela direita e ficar sempre debatendo em palestras, encontros, e páginas sociais", diz.
"Já começou a ditadura nas igrejas."

- Este texto foi publicado em https://correiobraziliense-br.informativocarioca.com/portuguese/brasil-63351457
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