
Enviado especial // Roma — Da janela do apartamento situado a menos de 1km da Cidade do Vaticano, é possível ver o domo da Basílica de São Pedro. Imagem que traz lembranças terríveis à norte-americana Ann Hagan Webb, 72, uma vítima de abusos sexuais cometidos por um padre, dos 5 aos 12 anos, que decidiu tornar-se psicóloga para ajudar outras vítimas. "Escolhi um quarto na parte de trás do imóvel, para não ter que vê-la à noite. Isso me daria pesadelos", disse. Por volta das 13h de ontem em Roma (8h em Brasília), Ann Webb e Anne Barrett Doyle, 66, codiretora da Bishopability, organização que coleta denúncias de casos de violência sexual cometida por membros do clero e de acobertamento da cúpula da Igreja, receberam o Correio para uma entrevista exclusiva. Anne Barrett Doyle não guarda meias-palavras ao falar sobre a possibilidade de Pietro Parolin, secretário de Estado do Vaticano, ser eleito papa no conclave que começa na quarta-feira. "Ele é um guardião dos segredos", afirmou, ao sugerir que o cardeal italiano tem bloqueado o a dossiês sobre abusos sexuais. A ativista também reconheceu iniciativas do papa Francisco para combater a pedofilia na Igreja, mas lamenta que ele tenha fracassado.
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Na sexta-feira, a organização Bishopability anunciou que os cardeais Pietro Parolin e Luis Tagle não são adequados para o cargo de papa. Por que?
Anne Barrett Doyle: O cardeal Parolin, enquanto secretário de Estado do Vaticano, é o responsável por bloquear o o de várias autoridades a documentos sobre abuso sexual em muitos países do mundo. Promotores e inquéritos governamentais na Polônia, na Austrália, no Reino Unido, na Bolívia e no Chile têm pedido à Santa Sé para que libere informação sobre abusadores nesses países, que estupraram e violentaram sexualmente crianças. Isso é informação sobre crimes sexuais que pertence a essas nações. Mas a Santa Sé diz: "Não, nós não lhes daremos esses dados". A pessoa responsável por essa decisão é o cardeal Pietro Parolin. Ele é um guardião dos segredos, essa é uma das suas principais tarefas, como secretário de Estado do Vaticano. Essa é uma preocupação primorial sobre ele, porque precisamos que o próximo papa acompanhe de perto os casos de crimes sexuais, que revele os nomes dos padres considerados culpados sob a lei da Igreja. Não há absolutamente nenhuma indicação de que o cardeal Parolin praticará a transparência.
E em relação ao cardeal Tagle, cujo nome tem circulado muito no Vaticano como papável?
Anne Barrett Doyle: O cardeal Tagle parece ter uma compreensão clara de como as vítimas estão machucadas e da culpabilidade dos bispos. Mas ele não tem nenhum entendimento sobre qual é a solução para isso. Ele tem defendido publicamente a resolução da crise por trás de portas fechadas. Isso é um desastre. Acredito que ele seja um bom homem, mas creio que seu pontificado seria terrível para vítimas e perigoso para as crianças, porque você não pode resolver essa crise atrás de portas fechadas. Segredos favorecem os perpetradores e prejudicam vítimas e crianças. Acho que o cardeal Tagle, com sua aversão a fornecer nomes à mídia e aos tribunais, seria um desastre.
Como a senhora analisa as iniciativas tomadas pelo papa Francisco, nos 12 anos de pontificado, para combater a pedofilia? Ele fracassou?
Anne Barrett Doyle: O papa Francisco fez algumas pequenas mudanças construtivas. Ele criminalizou o abuso sexual contra adultos vulneráveis. Foi uma reforma muito importante. Isso, provavelmente, foi a coisa mais importante que ele fez. Também criminalizou a retaliação contra os denunciantes. Ele também disse, supostamente, que responsabilizaria os bispos. Ele apresentou uma lei de responsabilização que detalha os procedimentos para denunciar e investigar bispos. Mas isso provou ter pouco impacto, porque há um sistema de autopoliciamento interno que desobriga informar a opinião pública. Na verdade, foi uma continuação das políticas da Igreja sob novo nome. Francisco se recusou a fazer o que precisávamos, que seria promulgar uma lei universal que removesse todos os abusadores sexuais do ministério. Vimos uma forma débil dessa lei operando somente na Igreja dos Estados Unidos. Os bispos americanos, em 2002, obtiveram uma isenção do Vaticano e receberam permissão para levar adiante uma estrita política de remoção de abusadores. O Vaticano não autorizou nenhum outro grupo de bispos a terem essa legislação. O resultado é um sistema de dois níveis, que discrimina crianças de fora dos Estados Unidos.
O que isso quer dizer?
Anne Barrett Doyle: Isso quer dizer que as crianças no Brasil correm mais perigo na Igreja Católica do que as crianças nos EUA. Porque o papa Francisco recusou-se a universalizar a lei usada nos EUA. Ele poderia ter feito isso facilmente. A segunda coisa que ele se recusou a fazer foi revelar nomes de abusadores comprovados pela lei da Igreja. Em termos da crise de abusos, foi um papado falho.
Se Parolin tornar-se papa nesta semana, isso seria um retrocesso na luta de vocês e de outras organizações?
Anne Barrett Doyle: Se o cardeal Parolin tornar-se papa, não haverá esperança de informações sobre abusos sexuais saindo do Vaticano e fluindo até as autoridades. O efeito do papel de Parolin, enquanto guardião de segredos, tem sido o de obstrução da Justiça em um país atrás do outro. Ele tem a autoridade para divulgar os arquivos sobre abusos, o que permitiria a promotores de todo o mundo trazer justiça e aprisionar criminosos sexuais. Ele está segurando essa informação, reivindicando soberania da Santa Sé. O resultado é que as crianças permanecem em perigo e os criminosos sexuais, livres. Sim, o pontificado dele seria muito ruim para vítimas e para pessoas vulneráveis na Igreja Católica, especialmente crianças.
Por que a Igreja abriga tantos escândalos sexuais?
Ann Hagan Webb: Ninguém de nós sabe o motivo pelo qual haja tantos agressores sexuais na Igreja Católica. No entanto, é um sistema fechado. O segredo, por si mesmo, convida os criminosos sexuais a se tornarem padres. Eles essencialmente retêm uma posição de poder dentro da comunidade e de respeito, o que mantém o seu o a crianças. Como Anne Doyle disse sobre os segredos, o que acontece é que, mesmo que o assunto seja tratado a portas fechadas, ninguém jamais saberá o nome daquela pessoa... Ela pode viver na porta ao seu lado e você não saberá que precisa manter seus filhos afastados dela. O segredo é inimigo da proteção às crianças.
A senhora poderia contar um pouco de sua história?
Ann Hagan Webb: Fui abusada pelo padre da minha paróquia, um bom amigo de meus avós, dos 5 aos 12 anos. Eu era a favorita na sala de aula, os meus colegas tinham ciúmes do fato de eu ser retirada da sala e levada com frequência à diretoria. Meus pais eram orgulhosos por isso, mas eu guardava um segredo terrível. Fui convencida de que, se eu contasse, seria a pessoa ruim. Crianças acreditam que, se denunciarem, serão consideradas más. Não os padres, porque eles são tão bons... Por sorte, tive uma família amorosa, que me deu apoio. Fui capaz de ir à terapia por 20 anos e meio. Acho que tive mais sorte do que muitos sobreviventes, pois tive oportunidade de me curar. Devotei os meus últimos 27 anos a defender os sobreviventes.
Que tipos de sequelas as vítimas de padres pedófilos carregam?
Ann Hagan Webb: O que os abusadores sexuais fazem com a vítima é enchê-la de vergonha. Isso destrói a confiança em outras pessoas. Com frequência, as pessoas não conseguem fazer conexões, têm relacionamentos fracassados. Há muito abuso de substâncias psicoativas, depressão. Muitas pessoas apresentam tendências suicidas ou cometem suicídio. É uma carga, um inferno. Até mesmo pessoas como eu, que me curei ao longo das décadas, sentem que as coisas voltam à tona.
Quais são seus sentimentos ao vir ao centro da Igreja Católica?
Ann Hagan Webb: Isso me enfurece. Enfurece-me o fato de eles não protegerem as crianças. Enquanto crianças, dizem-nos que os padres são pessoas boas, mais do que cidadãos comuns. Quando eles protegem a si mesmos, em todos os momentos guardam segredos. Para mim, é tão errado o fato de não protegerem os mais fracos, as crianças. Eu perdi a minha fé na Igreja Católica. Não sou mais católica, assim como muitos sobreviventes.