
Há momentos em que, nas imagens de arquivo do mais novo filme de Zelito Viana, Viva Marília, exibido no festival É Tudo Verdade — Festival Internacional de Documentários, ao falar da trajetória, a atriz Marília Pêra se impõe: fala do matriarcado presente no teatro brasileiro e ainda da comodidade de o público precisar "de uma dama, de uma estrela". Nisso, a carioca (morta aos 72 anos, há quase uma década), parecia nadar de braçada, e com folga singular. No filme, ela reverencia Henriette Morineau, Dulcina de Moraes, Bibi Ferreira e Fernanda Montenegro. No palco, a artista gostava de "brincar, de verdade" e queria parceiros que levassem a sério "a brincadeira". Com roteiro de Nelson Motta (um dos amistosos "ex-maridos"da "casadoira" atriz), a Marília vista no filme se diz capaz de "presentear com a liberdade" quem ama. O público sorverá (ainda sem data definida para a estreia) desta pretendida liberdade, na viagem em cinema, de uma vida toda.
Na base da proximidade, Zelito Viana conheceu e dirigiu Marília na linha dos programas de humor. "Ela fez muitas obras com o Chico Anysio (irmão de Zelito). Programas dele, eu dirigi, por um tempo. Tive ainda o convívio anterior, no primeiro filme que ela fez e que foi produzido por mim, e dirigido pelo Eduardo Coutinho (O homem que comprou o mundo). A Sandra (irmã de Marília) me ajudou muito: tudo de arquivo estava na mão dela. Então ela que me deu o. Quem teria filmado Marília Pêra, ainda criança?", comenta o diretor. Com grande respaldo de familiares, ele teve como codiretora Esperança Motta, uma das filhas de Marília. O lado autoral do filme brotou naturalmente: "Veio na premissa de não ter ninguém falado sobre ela; é ela mesma falando dela. Foi uma opção, antes de começar a fazer o filme. A minha contribuição é essa: na concepção. Não filmei nada: não tem um plano filmado por mim. É 100% material de arquivo". No processo, a Globo Filmes entrou como coprodutora do longa.
Ao longo da edição, Jordana Berg teve à mão 80 horas de gravações. No o ao material gigantesco, optou-se pelo encadeamento e de narrativa autossuficiente. Tudo sem muita invasão na vida pessoal. "Foi uma opção não invadir. Não tem nada de pessoal. É a vida profissional dela. Botava, na frente dela; botava, na frente de tudo, o profissionalismo. Era dedicada à profissão. Filho, marido, tudo isso para ela era ório (risos). Ela até diz isso que não era uma boa mãe e não era boa esposa. Pelo teatro, ela larga tudo", pontua Zelito. Mas e a palavra perigosa associada à Marília, diva, pesa na obra? "Marília era uma pessoa absolutamente superdotada. Ela é diferenciada, não tem similar nacional. Ela tinha multitalento violento e que foi algo que nasceu com ela. A família era de artistas do teatro e circo. Ela nasceu dentro do teatro. Ela tinha um talento excepcional. Uma pessoa que canta bem como a Dalva de Oliveira; dança como a Margot Fontayne e representa como a Fernanda Montenegro?! É um combo que não tem similar. Quis deixar isso claro no documentário", comenta o diretor.
Sem interesse pelos moldes das mocinhas das novelas (um caminho possível), Marília Pêra se consagrou pelo caráter multifacetado. "Ela vivia o desafio constante de se renovar. Não fez uma carreira de novelas como fez a Regina Duarte. Ela era inquieta. Queria fazer novas coisas e se desafiar. E tentando se superar e sair da zona de conforto", observa Zelito. Nesses rumos, a alienada Marília de uma era conta que com a montagem de Roda Viva (1968), num "ato de coragem (coletivo)", enfrentou a censura, enquanto com Apareceu a Margarida (1973) , pelo texto de Roberto Athayde e direção de Aderbal Freire-Filho, maximizou esforços como a professora íntima do autoritarismo.
Amor e energia
Longe do ideal de Cinderela — "de ir dos 13 aos 120 anos" com a mesma pessoa — ela conta "amar profundamente pessoas" e irar "boas energias". Emotiva e de "sangue quente", Marília assume não ter paciência para coisa morna. Ostra na personalidade, vivenciou o "turbilhão" nas artes. Prevista para ser "mocinha" de novela, desviou da curva e, na base da "delicadeza" (assumida por ela, no lugar da fama de "rigorosa") buscou dominar "todos os mistérios do mundo" a fim de reá-los para o público. Nisso, nasceram tipos em Beto Rockfeller (1968), feita na Tupi, e, mais adiante, personagens que "azedam" como Perpétua (no filme Tieta do Agreste) e a serviçal Juliana, da série O primo Basílio (1988), que emanavam carga "pobre e mesquinha". Nunca apelativo, o filme não trata da morte, em decorrência de câncer de pulmão.
Anterior ao sucesso internacional conquistado por Fernanda Torres e Ainda estou aqui, a Associação dos Críticos de Nova York já havia consagrado Marília Pêra, no início dos anos de 1980, pelo trabalho com Hector Babenco e Fernando Ramos da Silva, Pixote. Contestados retroativamente por parte da classe artística, os métodos da polêmica preparadora de elenco Fátima Toledo não ficam fora do radar de Marília Pêra. "Estava tudo lá (no arquivo). Não tem como correr disso. Aconteceu. Hoje em dia, dificilmente poderia se fazer uma cena como Babenco fez; com o menino matando uma pessoa. O compliance (comprometimento ético) não permitiria, hoje em dia. Se o filme teve isso, não sou eu que vou censurar. Extraordinário é o fato de Marília, que tem 13 minutos só na tela, ser tão lembrada e emblemática, num filme de uma hora e 40 minutos de duração", enfatiza o cineasta.
Em dado ponto, a estrela internacional de Pixote, a lei do mais fraco (1980) ite o pendor pelo patético dos personagens, como no caso de Toda a nudez será castigada (1998), peça de críticas controversas. Quanto ao filme, Mixed blood (1984), produção gringa, sequenciada ao sucesso internacional de Pixote, no documentário de Zelito, Marília "deu para o gasto" (conforme diz) e, em cena, encarna a Carmem Miranda que a consagrou no canto, era a "Abraham Lincoln do Brasil", como destaca a um dos personagens do filme. Curiosamente, na vida real, Marília, assumidamente, contou do projeto momentâneo de se tornar uma versão de Barbra Streisand.
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Alguns excertos de peças e filmes celebram a capacidade vocal, como os de A pequena notável (1971), Elas por ela (1990), Victor ou Victoria (2001), Dias melhores virão (1988), A estrela Dalva (1987) e até o de um programa da Hebe em que cantou um rap de Gabriel, o Pensador. Desde Rosinha do Sobrado (1965), a carreira nas novelas ascendeu, com ápice em O cafona (1971) e Brega e chique (1987). "Berço e arena", conforme observação do roteirista do longa Nelson Motta, o teatro fundamentou a vida da atriz, ex-bailarina do circo Tihany e que viu o cinema "como amante tardio". Atenta à importância da postura dos personagens (a chave entendimento da galeria de tipos que encarnou), Marília incondicional entusiasta da liberdade, lutou pelas composições presentes em Mademoiselle Chanel (2004), Master Class (1996), Prima dona (1992) e O exercício (1977), isso descontado o absurdo sucesso na direção de O mistério de Irma Vap (1986).