
A "poderosa corrente do caráter expressivo de Val Kilmer (morto na noite de terça)", junto com o lado batalhador, ao combater doenças (e "manter o espírito") foi ressaltada por Michael Mann (diretor de Fogo contra fogo, 1995), ao tratar da morte do astro de The Doors (1991) e Batman eternamente (1995). Arredio e excêntrico, Val, que por vezes colocou em teste seu estrelato, se afastando do cinema, morreu aos 65 anos, em decorrência de pneumonia, como relatou a filha Mercedes. "O talento cômico dele era de primeira, mas havia uma tempestade fascinante a fervilhar por baixo da superfície", repercutiu (nas redes sociais) o escritor e executivo da LucasFilm Pablo Hidalgo, que ressaltou o icônico personagem do ator em Willow — Na terra da magia (1988), de Ron Howard, no qual Kilmer conheceu a futura esposa Joanne Whalley (de quem se divorciou). George Lucas produziu aquele imenso sucesso, no qual Kilmer era um guerreiro e preceptor que enfrentava rainha vilanesca, com muita renovação tecnológica em quadro.
Tendo voado alto no cinema, Val Kilmer foi dos pilotos de caça que disputavam (e, no caso dele, com ares esnobes) com Tom Cruise a supremacia no comando de aeronaves. Na pele de Tom Iceman Kasansky, Kilmer brilhou em Top Gun (1986), em papel que retomaria, fragilizado, como mentor de jovens pilotos em Top Gun: Maverick (2022). Em tratamento por quase uma década de um câncer na garganta, o ator teve a voz associada à inteligência artificial para segurar os diálogos. Protagonizando as notas musicais e as mensagens do líder do The Doors, Jim Morrison, o ator recriou a dimensão messiânica do ícone roqueiro, no filme em que o diretor Oliver Stone carregou nas tintas, em The Doors (1991). Também recheada de drogas foi a jornada em Vício frenético (2009), ao lado de Nicolas Cage no elenco comandado por Werner Herzog.
Num dos pontos altos da carreira, o romance À primeira vista (1999), com Mira Sorvino, Kilmer caracterizou um tipo que recupera a visão, depois de operado. Na vida real, por quase três anos, o ator se disse estagnado, a partir de 1977, quando da morte do irmão mais novo, Wesley, afogado numa piscina. Kilmer testemunhou ainda divórcio dos pais, aos nove anos. "O talento dele só cresceu ao longo da sua vida. Era uma pessoa maravilhosa", ressaltou, na internet, o mestre Francis Ford Coppola que o dirigiu em Twixt (2011). Entre figuras de peso na indústria, o ator esteve no set com Marlon Brando e o diretor John Frankenheimer (A ilha do Dr. Moreau, 1996); despontou ao lado de Omar Sharif e Peter Cushing na amalucada comédia Top Secret — Superconfidencial, conduzida por Jim Abrahams e Jerry e David Zucker, em 1984, em torno de nazismo, espionagem e rock. Num roteiro de Quentin Tarantino, Kilmer foi coadjuvante de peso, em Amor à queima-roupa (1992), quando servia de mentor à louca escapada empreendida pelo personagem de Christian Slater. A partir da vida real de Robert Elliot Burns, condenado por crime na Georgia, e por duas vezes dado como fugitivo, Kilmer estrelou 1000 elos — O preço da liberdade (1987), ao lado da brasileira Sonia Braga.
Destaques
Ainda que tenha amargado quatro indicações ao Prêmio Framboesa, reservado aos piores no cinema, Kilmer também obteve reconhecimentos, nas indicações, por Batman eternamente e Fogo contra fogo, ao MTV Movie Awards de um dos astros mais desejados do cinema, além de ter vencido o Satellite Awards de melhor coadjuvante, com Beijos e tiros (2005), ao lado de Robert Downey Jr. Outra premiação veio pelo documentário Val (2021), que levou o Critics Choice pelo retrato afetuoso dos filhos (Mercedes e Jack) pela esperança reservada ao astro quando do enfrentamento de doenças. Seguidor da chamada Ciência Cristã (afastada, porém, de padrões científicos), o ator irava a fundadora do movimento, Mary Baker Eddy, que instituiu a Faculdade de Metafísica de Massachusetts (Estados Unidos). Entre incursões com traços religiosos, o ator encenou, no Hollywood Kodak Theater, Os dez mandamentos: o Musical (2006), na pele de Moisés, papel ao qual daria voz (junto com a voz de Deus) para a animação O príncipe do Egito (1998).
Com personagem na ficção Planeta vermelho (2000), detido na exploração de Marte, Val Kilmer ainda se afirmou em muitas aventuras com pé no chão. Na pele de um gângster, testemunhou o celebrado encontro de Robert De Niro e Al Pacino, Fogo contra fogo (1995) e no estrondoso sucesso Coração de trovão (1992), viveu um agente do FBI, no filme que teve Sam Shepard e o diretor Michael Apted como parceiros. Descendente de indígenas cherokees e de alemães, suecos e irlandeses, Kilmer se inseriu, à luva, na trama de preconceitos, choque de culturas e crimes em reserva indígena. Notável adorador do talento do humorista e autor Mark Twain, o astro dirigiu e atuou em Cinema Twain (2019), quase dez anos de estar nos palcos na peça Cidadão Twain (2010). O papel do escritor ainda foi repetido em Tom Sawyer & Huckleberry Finn (2014).
Nos palcos, em formação precoce pela Julliard School, o astro estrelou, na juventude, How it all began, peça do famoso Public Theatre, no qual viveu história baseada no ativista radical Michael Baumann, um violento guerrilheiro alemão. Com o politizado australiano Phillip Noyce, em O santo (1997), viveu personagem envolvido com a máfia e pelo de repertório em golpes. Novamente imiscuído com a máfia, houve o personagem de tio, em Vingança de família (2021), enquanto Crimes em Wonderland (2003) o levou a personificar o avantajado ator pornô John Holmes, em trama policial ao lado de Lisa Kudrow (de Friends).
Autor da própria biografia, na publicação I'm your Huckleberry (feita em 2020), Val Kilmer suscitou "memórias incríveis e pensamentos adoráveis" do astro da Marvel Josh Brolin (que se despediu do amigo, via redes sociais). Da mesma leva de talentos de Sean Penn e Kevin Bacon, Val Kilmer provou a versatilidade, indo do registro da vida do pintor (atividade ainda em que se expressou na vida real) Willem de Kooning (no longa Pollock, de 2000) à vivência da realeza macedônia, em Alexandre (de Oliver Stone). Figura marcante, pela vida, Val esteve com Kurt Russell e Charlton Heston, em Tombstone (1993), num roteiro de Veilho Oeste, e no qual se destacou como o amigo Doc Holliday, pistoleiro e tuberculoso, do lendário Wyatt Earp.