
À frente de uma obra discretamente detida na "concentração erudita de estudioso", segundo o pensador Antonio Candido, o poeta e ensaísta Affonso Ávila, morto em 2012, tinha o cuidado de nunca se repetir na obra derivada de uma vida retraída e cheia de letras. Sem muito orgulho, ele, que por duas vezes venceu o Jabuti (com O visto e o imaginado, em 1991, e com Cantigas do falso Alfonso el sábio, em 2007), se dizia um "lutador" de obstáculos, muito segregado na sociedade. O mineiro, autor de poesia construtivista e criador para a revista Barroco, é tema do documentário Cristina 1300 — Affonso Ávila — Homem ao termo, de Eleonora Santa Rosa, atração de hoje, às 19h30, no Cine Brasília (EQS 106/107). A sessão terá debate com a diretora e o artista visual Walter Silveira, e os ingressos custam R$ 10.
Em viagens internas, com toques de rancor e pessimismo, Affonso Ávila, o quinto filho — "tímido, arredio, feio e pobre", como diz — do casal Libertalina e Lindolpho, dá vazão, na escrita, à liberdade e ao impulso da "consciência crítica" sincopada. Em trechos objetivos, Affonso desencoraja a percepção de um legado por demais complexo. No terreno vazio, em que se viu abandonado, o poeta — conhecido por livros como Código de Minas & poesia anterior (1963/1967) e Carta do solo (1957/1960) — descortinou a fonte dos escritos, bem condizentes com a visão de que "o peito de ferro é um coração de ouro".
Embasado na noção de mito (O nada que é tudo) conceituada por Fernando Pessoa, Affonso Ávila criou uma poesia mítica com origem em tempos imemoriais. Com mais de 20 obras referenciais, o poeta teve as mineiras Belo Horizonte e Itaverava por portos seguros. Saudava o endereço Rua Cristina, 1300, como berço das análises e criações impulsionadas pelo barroco mineiro. Um dos organizadores da Semana Nacional de Poesia de Vanguarda, Affonso transitou no círculo de Murilo Rubião, Ferreira Gullar, Haroldo de Campos e Décio Pignatari.
Muito seletivo nas amizades, tinha comportamento à la Mario de Andrade e mesmo Drummond, preferindo a solitária companhia da Remington, em que transcrevia os poemas criados à mão — "a máquina que me deu o pão e a inspiração", como ressalta. Ressabiado pelo grupo dos colegas que gastavam "muito papel e pouco sangue na tinta", Affonso lapidava poemas embebidos em viés político como quando driblava a censura mais agressiva, com "te atrela ptoea que o doicode te herzoga". Nos discursos, afirmava a visão de que o poeta pode ser "um terrorista", ou mesmo "um traficante de drogas", frente "aos jovens cabeludos" com quem, paulatinamente, imiscuía-se na rua Cristina.
Entre muitos tópicos explorados, o filme a ser exibido hoje, mostra um artista que, até 1964, mantinha a "crença na dignidade nacional". "Homem ao termo", como ficou conhecido, Affonso foi pintado por Carlos Bracher; criou samba, (Meu samba, por ele cantado, depois dos créditos do longa-metragem); desconfiou da sanidade, pelos insólitos textos, e cantou o "fim de carreira" associados ainda à serenidade sexual do "poeta poente". Nisso, decifrou da "fatalidade do falo", mas regurgitou em alta voltagem criativa da eterna "mina" do poeta: "o verso é o viagra do poeta".
Entrevista // Eleonora Santa Rosa, cineasta
O que avaliza a permanência e validade das poesias de Affonso na atualidade? A temática, a forma, o estilo; no que tem mais unidade?
A poesia de Affonso, uma das mais importantes da segunda metade do século XX no Brasil, permanece e pulsa em função de sua potência em termos de linguagem, experimentação, singularidade, originalidade, fatura poética, humor, ironia, atualidade temática e perspectiva crítica. Nesse sentido, cabe destacar a carta que incluo no final do filme, de Antonio Candido, considerado um dos mais respeitados críticos brasileiros, que celebra e consagra o notável legado ensaístico e poético de Affonso para a cultura nacional. Uma bela homenagem e um merecido reconhecimento a esse poeta fundamental da nossa língua.
Me conte do "&", em tanta profusão, na escrita dele.
Na verdade, o "&" é marca de uma das mais importantes e belas incursões poéticas de Affonso Ávila, determinante na composição de seu livro Cantaria Barroca. Trata-se de um elemento de amarração, de ligação das pedras de cantaria, que ele chama de "gato" que encadeia uma pedra à outra. Esse fabuloso recurso de encadeamento entre os poemas da Cantaria é transposto para o filme, em diálogo com essa obra, fundamental em sua produção, funcionando como elemento de agem da sequência de poemas.
"Não ganhei a palma do óscar ganhei a prancheta do oscar" é das partes de um poema apresentado. Quais são os bastidores desse poema?
Afirmação do poeta na maturidade, que nunca se deixou seduzir pela mídia nem pela média, que sempre foi coerente e ciente do significado de sua obra, sem qualquer traço de cabotinismo ou egolatria, que sempre resistiu em seu ofício nos tempos mais duros e repressivos, que foi marginalizado e minimizado em função de sua posição ética, política, pessoal e comportamental, que optou pelo trabalho denso, consistente, crítico, solitário, que, nesse poema especifico faz uma blague entre Óscar e Oscar Niemeyer, a quem conhecia e se afinava em termos da estoicidade e do não deslumbramento, embora, ambos, fossem quem fossem.
Houve 31 anos de convivência com ele, não? Em que se ateve para delinear o material do filme?
Na poesia. O que sempre me interessou e interessava era a possibilidade de transpor para o filme a poesia, pedra de toque de sua obra, por sua própria percepção e voz. Portanto, diferentemete das cinebiografias que costumam ter um caráter laudatório em relação ao personagem enfocado, por intermédio de depoimentos de especialistas, familiares e/ou amigos, optei por mostrar tão somente o poeta e sua poesia, sem nenhum tipo de consideração que pudesse dispersar a concentração, a perspectiva, o olhar de seu criador, a potência de seus poemas, buscando, ainda, pelo meu turno, dialogar com ele por meio da trilha sonora, do design, da montagem, da seleção e edição dos poemas.
Laís Corrêa de Araújo contribuiu de que forma ao filme?
Laís, mulher de Affonso, crítica, tradutora, ensaísta e poeta de excelência, com quem foi casado por mais de 50 anos, faleceu em 2006, portanto, seis anos antes da partida de Affonso. Não há em relação ao filme qualquer contribuição familiar, uma vez que considerei melhor que a família visse o resultado do trabalho no cinema, trabalhei de modo independente. Laís, por sua trajetória e importância, mereceria ser tema de um documentário específico. Fica até a sugestão.
Affonso Romano de Sant´Anna (poeta e crítico morto há menos de uma semana), no material apresentado pelo filme se mostra tão surpreso da extensão da voz de Affonso na ditadura, especialmente lá em Minas. Qual o motivo?
Boa pergunta. Creio que o próprio Affonso Ávila a responde bem no filme. Affonso Romano residia há muito no Rio e ainda gozava de amizade com Ávila, nos anos 70. Ávila, posteriormente, a partir de uma bienal literária acontecida em SP, na década de 1980, rompeu com Romano, que assumiu uma controversa posição crítica e estética em relação às vanguardas, aos poetas concretos e ao projeto nacionalista-crítico da década de 1960.
O cineasta Cacá Diegues fortaleceu a expressão "patrulha idológica". Como a vê sublinhada na obra de Affonso?
A expressão "patrulha ideológica", nos anos 1970, assim como "geleia geral", nos anos 1960, ambas perduram desde então, já estava na ordem do dia e Affonso a utiliza brilhantemente num de seus poemas mais contundentes, que, no filme, leio em dupla com Vera Holtz, intitulado Patrulha ideológica, poema todo em caixa baixa, uma verdadeira porrada! Esse texto integra um de seus mais fortes e instigantes livros, O belo e o velho, que reúne poemas produzidos entre 1982 e 1986. São de tirar o fôlego.
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