
*Por Nathália Queiroz, Ana Carolina Alves e Mila Ferreira
Em plena luz do dia, e diante de dezenas de testemunhas, um homem de 24 anos matou Darlan William Rocha, 35, com diversos golpes de faca, na plataforma E da Rodoviária do Plano Piloto, por volta das 12h30 de ontem. O crime chocou quem ava pelo local, conhecido pela violência e vulnerabilidade social.
O autor foi identificado como João Paulo Santana Portugal, que possui um mandado de prisão em aberto e mais de 16 agens criminais, incluindo uma tentativa de homicídio em um caso similar ao que ocorreu ontem, além de uma importunação sexual, porte de arma branca e agressões. A vítima também acumulava agens. Os dois homens estavam em situação de rua.
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De acordo com testemunhas, João Paulo e Darlan eram desafetos antigos, e o crime teria ocorrido durante uma briga por uma garrafa de cachaça. Num primeiro momento, a vítima foi agredida pelo autor e por outro homem, ainda não identificado. Após alguns minutos, João Paulo voltou com uma faca do tipo peixeira e desferiu diversos golpes na vítima, que morreu no local. Um vigilante conseguiu impedir a fuga do autor e ele foi conduzido por policiais militares à 5ª DP. Em nota, a Polícia Militar (PMDF) destacou a reincidência e a periculosidade do autor.
Para o advogado criminalista Joaquim Pedro de Medeiros Rodrigues, o fato de João Paulo permanecer solto, apesar da extensa ficha criminal, mostra que a atuação da Justiça não está imune a falhas ou críticas. "Muito pelo contrário. Casos como esse provam a complexidade que é o processo penal: de um lado, tendo que conciliar a presunção da inocência e, de outro, a necessidade de garantir o cumprimento da lei", explicou.
Comerciantes da rodoviária afirmaram que a área é conhecida como ponto de tráfico e consumo de drogas, além de ser palco frequente de brigas entre pessoas em situação de rua. "Quem a por aqui todo dia já se acostumou", relatou um dos trabalhadores, que preferiu não se identificar.
A PMDF afirmou que há policiamento constante e fixo no local, mas disse que só pode ar dados e informações mais detalhadas no decorrer da semana. A Secretaria de Segurança Pública informou que não possui um recorte com o número de casos de esfaqueamento no terminal rodoviário.
Memória
Nos últimos cinco anos, foram registrados pelo menos 12 episódios de esfaqueamento na Rodoviária do Plano Piloto, um deles envolvendo o autor do homicídio de ontem. Em novembro de 2023, João Paulo teria tido um desentendimento com Rafael Rodrigues Lopes, 29, relacionado ao consumo de entorpecentes, e golpeou o homem com uma faca. Rafael morreu uma semana após o crime. O processo tramita no Tribunal do Júri de Brasília e tem a sessão de julgamento marcada para junho de 2026.
Em 10 de outubro de 2022, um homem de 45 anos foi morto a facadas na rodoviária. Segundo as investigações da 5ª Delegacia de Polícia, o crime também foi motivado por uma desavença envolvendo drogas. Um dos envolvidos no caso era menor de idade e, depois de apreendê-lo, a polícia identificou que ele era suspeito de envolvimento em outra tentativa de homicídio, também na Rodoviária, onde desferiu uma facada no pescoço da vítima, que foi socorrida e sobreviveu.
Concessão
Na última sexta-feira, o Governo do Distrito Federal (GDF) prorrogou o prazo para a conclusão da transferência operacional da Rodoviária do Plano Piloto para o Consórcio Catedral. A data, que estava marcada para 22 de maio, ou a ser 1º de junho, a pedido da concessionária.
A Secretaria de Transporte e Mobilidade (Semob) disse, em nota, que a Catedral está adotando medidas voltadas à modernização do espaço, com foco no conforto, segurança e bem-estar dos usuários. A empresa ficará responsável pela estrutura física de todo o complexo rodoviário e de seus os.
"(Ela) irá modernizar e manter a rodoviária, incluindo a construção de uma estação de operação do BRT. Entre os investimentos previstos, estão a reforma das escadas rolantes e dos elevadores, a modernização das estruturas internas e a requalificação de áreas de uso comum. Também estão previstas melhorias na segurança e a implantação de novos serviços para aprimorar a experiência dos ageiros", completou a Semob.
A Catedral ressaltou que o caso registrado ontem é um episódio de segurança pública, cuja atuação é de responsabilidade das autoridades competentes. "A Catedral mantém diálogo constante com a Polícia Militar e a Secretaria de Segurança Pública do DF para intensificar o policiamento e coibir práticas ilícitas na área. A expectativa é de que a cooperação entre os órgãos públicos e a iniciativa privada fortaleça a segurança no local", informou a empresa.
Acolhimento
No mesmo dia em que Darlan William foi assassinado na Rodoviária do Plano Piloto, o Governo do Distrito Federal (GDF) reuniu secretarias e órgãos públicos para uma ação conjunta de acolhimento e assistência social, voltada a pessoas em situação de rua instaladas nos Setores Hoteleiro Norte e Sul, na Via N2, no estacionamento do Ministério de Defesa e na SQN 216. A operação não incluiu o local do crime.
Segundo a Secretaria de Desenvolvimento Social (Sedes), a rota das ações conjuntas é organizada pela Secretaria de Estado de Proteção da Ordem Urbanística do Distrito Federal (DF Legal). A secretaria informou que acompanha, sistematicamente, as pessoas em situação de rua do DF, por meio de 27 equipes do Serviço Especializado em Abordagem Social (Seas), organizadas nas regiões istrativas.
"Nesse monitoramento, é ofertado acolhimento e o a serviços e benefícios socioassistenciais da Assistência Social e de outras áreas, como a Saúde. Essa atuação inclui evolução de atendimento (criação de prontuário com abordagens frequentes) em que são ofertados, além do acolhimento, benefícios e encaminhamento para outras políticas públicas", afirmou a Sedes em nota, destacando que o DF tem um Plano Distrital para População de Rua envolvendo diversos órgãos do governo.
Ainda segundo a pasta, a infraestrutura de atendimento conta com dois Centros Pop (Asa Sul e Taguatinga) que funcionam diariamente, a partir das 7h, e 13 Centro de Referência Especializado de Assistência Social (Creas). "As unidades socioassistenciais viabilizam a garantia de direitos a essa população, entre eles, a inscrição e atualização no Cadastro Único, para o a benefícios federais, como o Bolsa Família, e distritais, a exemplo do DF Social. Além disso, as pessoas em situação de rua podem fazer qualquer uma das refeições disponíveis, gratuitamente, nos 18 restaurantes comunitários do DF", finalizou.
Saiba Mais
POVO FALA
Erick da Costa França, 42, gráfico, Valparaíso
Aqui, a gente tem que estar o tempo todo atento aos pertences, bolsa, carteira, etc. Tem muitos batedores de carteira que aproveitam quando a escada rolante está cheia para roubar. Já tentaram roubar minha esposa, tentaram enfiar a mão na bolsa dela, mas quando viram que eu estava junto, desistiram.
Pedro Henrique Macedo, 23, piscineiro, Luziânia
Eu acho que deveria ter mais policiamento, mais segurança. Aqui tem muitas pessoas em situação de rua e isso acaba deixando a rodoviária mais insegura, porque muitos deles realizam furtos e outros crimes piores, como esse homicídio. Acho que deveria haver revista por aqui, para evitar que as pessoas andem com facas.
Ozeny do Nascimento, 45, auxiliar de serviços gerais, Valparaíso
Eu já vi gente roubando celular aqui mais de uma vez. Muito morador de rua, muito mendigo. Eles roubam mesmo. Se não ficarmos o tempo todo segurando a mochila com cuidado, somos roubados. Eu acho que o governo devia dar assistência para essas pessoas em situação de rua. Não é só expulsar daqui, tem que dar oportunidade. Até que tem muito policial aqui, mas a violência continua.
Gláucia Costa Moreira, 50, auxiliar de serviços gerais, Brazlândia
Já furtaram meu celular de dentro da minha bolsa aqui na rodoviária. Mais de uma vez, já me pediram alguma esmola aqui e foram agressivos comigo quando disse que não tinha. Tem muito usuário e vendedor de droga por aqui, eles querem dinheiro para comprar droga, muitas vezes estão em abstinência e ficam nervosos. A gente fica muito vulnerável a essas pessoas.
Paloma Santos, 32, psicóloga, Guará
A questão não são as pessoas em situação de rua, a abordagem para tirá-los está errada, por isso eles continuam voltando. Tem gente que não está em situação de rua, são bandidos mesmo e vêm para cá praticar crimes.
Por mais justiça social
Por Erci Ribeiro, especialista em política social
É importante entender que a dinâmica que envolve as pessoas em situação de rua envolve um contexto de múltiplas vulnerabilidades. Há a questão da saúde mental dessas pessoas, a questão da instabilidade financeira, econômica e social. A fragilidade econômica, por si só, desencadeia outras consequências, outras situações que impactam a vida das pessoas de modo geral.
As pessoas em situação de rua estão expostas a inúmeras intempéries, que as colocam em uma situação de medo, incerteza, insegurança. Há uma dificuldade na resolução de conflitos, em buscar a efetividade de seus direitos, em serem acolhidas e atendidas nos equipamentos públicos e em serem vistas enquanto cidadãos de direitos. Quando a justiça social não alcança essas pessoas, os conflitos e tensionamentos são potencializados pelo medo, pela incerteza e até mesmo pela violência.
Dessa forma, a exposição, a incerteza de uma unidade de acolhimento, de um lar de fato que possa abrigar suas necessidades, além da falta de cuidado com a saúde mental dessas pessoas, podem gerar sucessivas situações de violência. Até porque o contexto em que elas estão inseridas é um contexto de violação de direitos.
O estigma está estruturado na sociedade com relação às pessoas em situação de rua. Quando essas pessoas são vistas, são enxergadas como alguém que não deveria estar naquele lugar, são invisibilizadas de um modo geral, inclusive, na efetividade das políticas públicas e das políticas sociais.
Temos um plano nacional e um programa distrital que ainda não decolaram, no sentido de incluir essas pessoas na intersetorialidade. Tanto é que, recentemente, tivemos um movimento da sociedade civil exigindo a ampliação de vagas aos profissionais do corpo técnico especializado em lidar com pessoas em situação de rua. O fato é que essas pessoas precisam estar efetivadas no campo da justiça social.