Redes sociais

O perigo silencioso que se esconde por trás dos desafios da internet

Supostas brincadeiras on-line transformam curiosidade em tragédia para crianças e adolescentes. Recentemente, a morte de uma menina de 8 anos acendeu o alerta em Brasília. Pais buscam estratégias para proteger seus filhos em um ambiente digital que premia o absurdo. Especialista cobra mais vigilância

Risco Digital Cidades 2505 -  (crédito: Caio Gomez)
Risco Digital Cidades 2505 - (crédito: Caio Gomez)

Uma tela na palma da mão. Um clique. Uma visualização em um conteúdo inapropriado. Muitas vezes, esses são os elementos que transformam brincadeiras que começam como curiosidade em tragédia. Os desafios perigosos presentes nas redes sociais têm deixado famílias em estado de alerta — e escancarado o risco ao qual crianças e adolescentes correm todos os dias, dentro de casa, quando estão conectados à internet sem supervisão dos responsáveis.

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Desafios com incentivo à inalação de aerossóis, o sufocamento, a automutilação, o consumo de substâncias tóxicas ou ações arriscadas em nome de curtidas e visualizações se espalham entre os jovens como uma corrente silenciosa. Em muitos casos, a brincadeira viral começa sem que os pais sequer saibam. E, às vezes, não dá tempo de intervir.

Na tragédia mais recente ocorrida no Distrito Federal, uma menina de 8 anos foi a vítima da vez. Sarah Raíssa Pereira teria participado do chamado "desafio do desodorante" — e morreu, em abril, após inalar o produto. O episódio, investigado pela Polícia Civil (PCDF), é só um de uma série de casos envolvendo práticas absurdas, mas infelizmente comuns na lógica de engajamento das redes sociais.

Medo e proteção

Entre pais e crianças moradoras da capital federal, o cenário traz medo e também incertezas. Os pequenos tentam navegar em meio a um mar de informações digitais. Enquanto isso, os adultos buscam estratégias para proteger os filhos sem restringi-los excessivamente.

Wesley Francisco, tatuador de 37 anos e morador de Sobradinho, acompanha de perto o que a filha, Raquel Felícia, 11, a na internet. A menina tem suas preferências na hora do lazer. "Gosto de jogar no celular. Acho mais divertido", conta. Entretanto, o pai impõe algumas restrições quanto ao uso de redes.

Na visão dele, influenciadores digitais têm grande parcela de responsabilidade na atenuação dos perigos relacionados ao ambiente digital ado por crianças. "Quem posta certos conteúdos deveria ser responsabilizado. A criança, obviamente, não tem noção do perigo", afirma. Francisco ainda ressalta que, além da proibição, é essencial a proximidade: "Se você é amigo do seu filho, vai naturalmente saber o que está acontecendo".

Moradora de Samambaia, a autônoma Maria Silva, 41, expressa a mesma preocupação. Mãe de três filhos, ela mantém postura rígida quanto ao o dos jovens à internet. "Se não souber ar com cuidado, é muito perigoso, principalmente pela quantidade e variedade dos conteúdos", avalia. Maria relembra desafios que circularam nas redes, como o da Baleia Azul, associado a riscos de mutilações. "Na época, meus filhos ficaram com muito medo", relembra.

Raquel Freitas, 15, filha de Maria, não possui aparelho celular próprio. A ausência do dispositivo, segundo ela, é escolha da mãe, baseada em critérios de segurança. "Minha mãe acha mais seguro. Acostumei com o tempo e hoje sinto pouca falta", conta. Para Maria, a chave está na supervisão ativa e na responsabilidade dos pais. Não dá pra largar o smartphone na mão deles e pensar estar tudo certo".

Pressão

Por trás desse panorama está uma cultura digital que, por vezes, premia o absurdo. Quanto mais chocante o vídeo, maior e a veiculação. Quanto mais extremo o desafio, mais ele atrai — especialmente jovens em fase de desenvolvimento emocional e sem maturidade para identificar ameaças ou resistir à pressão do grupo.

Professora de psicologia do Centro Universitário de Brasília (Ceub), Izabella Melo destaca que essa combinação é perigosa, pois ocorre num momento sensível que marca a infância e a adolescência. "Crianças e adolescentes estão em processo de formação da identidade, da moralidade, da visão de mundo. E, hoje, boa parte dessas experiências a pelas redes sociais", afirma.

O contato virtual entre pares — pessoas da mesma faixa etária ou com interesses parecidos — pode até parecer inofensivo, mas traz consigo perigos graves. "Muitas vezes, ao aceitar participar de desafios perigosos, o jovem está tentando garantir um lugar naquele grupo, evitar a exclusão. O peso desse fator é enorme nessa fase da vida", explica. Ela ressalta que o cérebro em desenvolvimento ainda não tem todas as habilidades cognitivas formadas. Isso limita a capacidade de avaliar riscos com clareza.

Sobre os caminhos para proteção, Izabella defende um esforço coletivo e estruturado, desde a regulamentação das plataformas até mudanças na vida cotidiana. "É preciso criar condições para que os pais estejam presentes. Isso também envolve políticas públicas que melhorem transporte, trabalho, segurança. Famílias com tempo e estrutura conseguem acompanhar melhor a vida digital dos filhos", pontua.

Na avaliação do advogado criminalista e do professor de direito Alexandre Carvalho, o Brasil enfrenta um vácuo legislativo no que diz respeito à regulamentação eficaz das redes sociais, especialmente diante dos desafios perigosos que afetam as crianças. “Hoje, não há uma lei específica que responsabilize essas plataformas de forma direta, e os legisladores precisam agir, por meio de projetos ou mesmo de medidas provisórias (contra essas plataformas)”, explica. Segundo ele, criminalmente, as empresas não podem ser punidas, mas há possibilidade de responsabilização civil. Se for identificada quem criou ou divulgou o desafio, essa pessoa física pode responder por incitação ao suicídio. “Falta um caso emblemático solucionado para frear essa onda trágica”, conclui.

 


Artigo

Os desafios na internet têm se tornado uma preocupação crescente entre pais e especialistas, pois muitas dessas tendências podem representar riscos sérios para crianças e adolescentes. O assunto gera polêmica, visto que a geração atual de pais não viveu esse boom tecnológico e não sabe como manejar a situação. 

Nos últimos meses, temos nos deparado com algumas situações que saem da rotina habitual de cuidado com crianças e adolescentes: os chamados "desafios da internet". Esses desafios são promovidos em redes sociais e incentivam comportamentos perigosos, como sufocamento, ingestão de substâncias tóxicas ou até mesmo autoagressão. 

Um dos principais problemas é que crianças e adolescentes, em busca de aceitação social ou popularidade, podem se sentir pressionados a participar desses desafios sem avaliar os riscos envolvidos. Além disso, a falta de supervisão adequada e o o ir à internet aumentam a exposição a conteúdos potencialmente prejudiciais.

Casos de crianças que sofreram ferimentos graves ou até perderam a vida ao tentar imitar desafios virais já foram registrados em diversos países, e tem aumentado cada dia mais, inclusive no Brasil. A melhor forma de prevenção é o diálogo aberto entre pais e filhos, além da imposição de limites ao o à internet ou mesmo o uso de ferramentas online para este fim.  

O primeiro o é a conscientização sobre os perigos do o ir à internet. É importante que os responsáveis incentivem o uso seguro da internet (restringindo horário de uso e com ferramentas que bloqueiam páginas perigosas) bem como promovendo um ambiente digital saudável e ensinando as crianças a reconhecer e evitar esses perigos.

Henrique Gomes, pediatra e gastropediatra do Hospital Santa Lúcia de Brasília

Dicas para os pais

- Estabeleça um canal de diálogo e confiança: de forma leve e convidativa, crie momentos para conversar sobre o uso da internet, perguntando o que seu filho tem visto e compartilhado nas redes sociais. Conte histórias ou use exemplos fictícios de desafios perigosos, mostrando que, às vezes, algo que “parece brincadeira” pode ter graves consequências. Dessa forma, a criança sente que pode falar abertamente caso encontre algo suspeito ou que gere dúvidas;

- Incentive a postura crítica e o senso de responsabilidade: explique que nem tudo que aparece na internet é confiável ou seguro. Mostre, de forma lúdica (por exemplo, com joguinhos de “verdade ou mentira”), como verificar se uma informação ou “desafio” é real e seguro. Assim, a criança aprende que tem papel ativo na própria proteção, reconhecendo possíveis riscos e sabendo se recusar a participar de conteúdos nocivos;

- Utilize ferramentas e limites de navegação: aproveite recursos de controle parental em celulares, computadores e videogames, ajustando filtros de busca e restringindo o o a determinados aplicativos ou conteúdos. Combine regras claras de uso das redes (como horários e prazos de utilização), tornando a internet um espaço mais seguro;

- Monitore e denuncie comportamentos suspeitos: fique atento aos sinais de alerta (mudança de humor, fala sobre desafios perigosos, curiosidade excessiva sobre produtos químicos etc.). Caso identifique vídeos, páginas ou perfis que incentivem comportamentos arriscados, denuncie-os às plataformas e às autoridades competentes. É importante guardar evidências (prints, links) e buscar orientação legal, sempre visando proteger a criança e responsabilizar quem propaga conteúdo perigoso.

Violência sexual on-line cresce

O ChildFund Brasil lançou a segunda etapa da pesquisa Mapeamento dos Fatores de Vulnerabilidade de Adolescentes Brasileiros na Internet, com foco no abuso e exploração sexual on-line. O estudo trouxe uma análise detalhada do comportamento e do estado emocional dos adolescentes em ambientes digitais e revela que 54% dos adolescentes brasileiros sofreram violência sexual na internet, o que corresponde a 9,2 milhões.

No estudo, foram ouvidos cerca de 8.500 adolescentes de 13 a 18 anos, de todas as regiões do país, especialmente do Nordeste e Sudeste. A pesquisa apontou que, com o aumento da idade, cresce também o tempo de uso da internet e a variedade de aplicativos, o que eleva em até 1,3 vezes o risco de violência online para jovens de 17 e 18 anos em comparação aos de 15. Em média, a pesquisa apontou que os adolescentes am quatro horas diárias conectados, principalmente pelo celular e fora do contexto escolar.

Operação contra crimes cibernéticos

Uma operação da Polícia Civil do Estado de Mato Grosso, com o apoio do Laboratório de Operações Cibernéticas (Ciberlab), vinculado à Diretoria de Operações e Inteligência (Diopi) da Secretaria Nacional de Segurança Pública (Senasp) do Ministério da Justiça e Segurança Pública (MJSP), realizada ontem, desarticulou uma rede criminosa que atuava em plataformas digitais, especialmente contra crianças e adolescentes.

As investigações identificaram uma rede que, de forma articulada, praticava crimes como indução, instigação ou auxílio à automutilação e ao suicídio, perseguição (stalking), ameaças, produção, armazenamento e compartilhamento de pornografia infantil, apologia ao nazismo e invasão de sistemas informatizados, incluindo o não autorizado a bancos de dados públicos.

As práticas criminosas ocorriam, principalmente, em plataformas como WhatsApp, Telegram e Discord, nas quais os investigados disseminavam conteúdos de violência extrema e estimulavam comportamentos autodestrutivos, como coação psicológica, ameaças e exposição pública de vítimas, causando danos emocionais e psicológicos.

O diretor da Diopi, Rodney Silva, disse que o MJSP promoveu a integração operacional entre as Polícias Civis dos estados, possibilitando uma ação coordenada, simultânea e robusta. "A troca de informações e o alinhamento foram fundamentais para que a operação atingisse abrangência nacional, visando proteger nossas crianças e adolescentes e responsabilizar aqueles que se escondem no ambiente digital para praticar crimes tão graves", destacou.

 

postado em 28/05/2025 04:00
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